A gestão dos clubes brasileiros é objeto de preocupação por todos que admiram o esporte. Historicamente, essas entidades têm sido administradas por pessoas eleitas dentro de seus quadros associativos, sem que necessariamente tenham de preencher requisitos técnicos e de experiência prévia para exercer suas funções.
Envolvidos em disputas políticas e buscando a conquista de títulos a qualquer preço, muitos dirigentes contribuíram para o exponencial avanço das dívidas de seus clubes de tal forma que alguns, se empresas fossem, estariam em situação falimentar.
Impende destacar os efeitos gerados pela pandemia de Covid-19 nas receitas dos times nacionais, agravando ainda mais o cenário. De acordo com estudo publicado pela Ernst & Young, os 23 principais clubes nacionais sofreram uma perda de aproximadamente 800 milhões de reais na receita total de 2020 em comparação com o ano anterior e viram seu endividamento líquido ultrapassar a marca dos 10 bilhões de reais.
Além da supracitada crise econômico-financeira perpassada pelas principais equipes brasileiras, há, ainda, o crescente custo para formar um elenco de alto nível, o que demanda o aumento e a diversificação cada vez maior das receitas.
Por isso, muito se debate sobre a criação de um marco regulatório que estimule os clubes a adotarem o formato empresarial. Em que pese esteja em evidência no momento, com a existência de alguns projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, o tema não é novo.
A Lei Zico (Lei nº 8.672/1993), que até então era a principal lei do esporte nacional, tratava da possibilidade de transformação das associações esportivas em sociedades, prevendo que as entidades teriam a faculdade de se transformarem em empresas, senão vejamos:
Art. 11. É facultado às entidades de prática e às entidades federais de administração de modalidade profissional, manter a gestão de suas atividades sob a responsabilidade de sociedade com fins lucrativos, desde que adotada uma das seguintes formas:
I – transformar-se em sociedade comercial com finalidade desportiva; (…)
Com a demonstração de que tal dispositivo não seria suficiente para incentivar a migração para o modelo empresarial por parte dos clubes, motivo pelo qual, em 1998, a Lei nº 9.615, também chamada de Lei Pelé, e que revogou a Lei Zico, estabeleceu a obrigatoriedade de que os clubes profissionais constituíssem empresas para a disputa de competições, nos termos do dispositivo abaixo transcrito:
Art. 27. As atividades relacionadas a competições de atletas profissionais são privativas de:
I – sociedades civis de fins econômicos;
II – sociedades comerciais admitidas na legislação em vigor;
III – entidades de prática desportiva que constituírem sociedade comercial para administração das atividades de que trata este artigo.
Parágrafo único. As entidades de que tratam os incisos I, II e III que infringirem qualquer dispositivo desta Lei terão suas atividades suspensas, enquanto perdurar a violação.
Todavia, essa imposição esbarrou no princípio previsto no art. 217 da Carta Magna brasileira, o qual garante a autonomia das entidades desportivas no tocante ao seu funcionamento e organização.
Dessa forma, não tardou para que essa exigência fosse descartada, a partir da Lei Maguito Vilela, de nº 9.981/2000, tornando a transformação societária novamente em mera faculdade das entidades de prática desportiva.
Mesmo com caráter facultativo, a conversão de clubes de futebol para um modelo empresarial – ou próximo a isso – nunca deixou de ser tema de discussão entre os gestores de clubes, operadores da justiça desportiva, legisladores ou meros torcedores.
Atualmente, o principal projeto de lei (“PL”) que visa fomentar a adoção do modelo empresarial por parte dos clubes, em trâmite no Congresso Nacional, de nº 5.516/2019, prevê a criação de um tipo societário específico aos clubes de Futebol, denominado Sociedade Anônima do Futebol (SAF).
Ressalta-se que alguns países adotaram a criação de uma sociedade destinada aos clubes de Futebol, como Espanha e Portugal. Por outro lado, clubes americanos e ingleses adotam os tipos societários disponíveis a qualquer outro agente econômico.
Impende destacar que os países que adotaram o modelo específico para o Futebol tornaram a conversão de seus clubes, salvo poucas exceções, obrigatória, o que não poderia ocorrer no Brasil, em razão da mencionada autonomia das entidades desportivas.
Ou seja, com a criação da SAF será possível que ocorra um campeonato com clubes constituídos por, pelo menos, quatro formatos diferentes: associações sem fins lucrativos, sociedades limitadas, anônimas e as SAFs.
Cada uma dessas estruturas jurídicas contém regramentos próprios, com limitações e benefícios distintos, o que poderá tornar o ambiente negocial bastante complexo para o investidor, principalmente em se tratando de estrangeiro, que busca um mercado atrativo e com segurança jurídica.
Por exemplo, um investidor que tenha participação societária em uma SAF não poderá ser acionista de outra, restrição esta, não imposta às sociedades limitadas e anônimas.
Outro ponto interessante sobre o PL é a previsão de normativas que visam impulsionar uma boa gestão por parte dos clubes, bem como inibir atuações danosas e contraproducentes de dirigentes, através da existência de órgãos de governança corporativa, como os Conselhos Fiscal e de Administração.
No entanto, fato é que a mera conversão empresarial não será garantia de boa administração, caso contrário, não haveria tantas empresas em crise. Além disso, é possível notar que o foco central de algumas das iniciativas legislativas que tratam da matéria é apenas ser uma espécie boia salva-vidas de clubes endividados.
Ou seja, em determinadas situações não há uma real mudança de mentalidade por parte dos responsáveis pelas entidades de prática do desporto, mas apenas uma tentativa desesperada de captar novos investidores.
Da mesma maneira que as associações, o modelo empresarial apresenta vantagens e desvantagens, de modo que apenas com a adoção de boas práticas de governança corporativa, o clube poderá se desenvolver e competir no atual mercado do Futebol, extremamente globalizado.
Apoiar-se na mera conversão de tipo empresarial como salvação dos endividados clubes de futebol será um enorme equívoco da comunidade futebolística.
Assim, surge a questão: como demonstrar que os modelos societários podem ser boas opções para os clubes de futebol e para a Indústria como um todo, atraindo investidores e ensejando gestões eficientes, sem serem tratados como soluções mágicas?
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Carlos Magno F. N. Cerqueira é ex-supervisor de Futebol nas categorias de base do Botafogo F.R, graduado em Educação Física, graduando em Direito pelo Ibmec RJ e pós-graduando em Negócios no Esporte e Direito Desportivo pelo CEDIN. Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Desportivo – Ibmec RJ. Certificado em Governança Corporativa e Compliance no Futebol pela CBF Academy, em Compliance e Governança Corporativa pela ESA OAB/RJ e Recuperação Judicial e Falência pelo IBDE.
Heloisa Schmidt F. Medeiros é advogada e graduada em Direito pelo Ibmec RJ. Fundadora e Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Desportivo – Ibmec RJ. Auditora da 1ª Comissão Disciplinar do STJD do Judô. Defensora Dativa do TJDAD. Colunista e apresentadora do “Lei em Campus”. Certificada em Direito Desportivo pela PUC Rio, ESA RJ e FUTJur. Pós-graduanda em Direito Contratual e Responsabilidade Civil pela EBRADI/ESA SP.
Publicado em: https://leiemcampo.com.br/modelo-empresarial-nas-entidades-esportivas-a-discussao-deve-ser-tecnica/