08 de julho de 2021 Remédio jurídico para a crise dos clubes de futebol

A pandemia da Covid-19 agravou a situação financeira de praticamente todos os setores da atividade econômica, escancarando a fragilidade dos agentes econômicos diante dos imprevistos de um mundo altamente globalizado.

O mundo do futebol não saiu ileso ao perder na pandemia o que lhe é mais precioso: a presença dos torcedores nos estádios, o que, além da falta de interação com sua base de fãs, resultou em um enorme impacto financeiro nas suas já combalidas contas.

Sob esta ótica, é importante ressaltar que os 20 clubes de maior faturamento do país registraram em 2020 uma queda na receita acumulada de cerca de 20%, em relação ao ano anterior, totalizando um faturamento R$ 5,1 bilhões ante os R$ 6,1 bilhões em 2019. Por outro lado, não há de se olvidar que estes números são significativos para a economia brasileira, o que corrobora a importância desse mercado e da manutenção de seus players.

Em meio à acentuada redução de receitas, o endividamento dos grandes clubes atingiu o maior patamar da história, alcançando um total de R$ 10,3 bilhões em 2020, o que representa um aumento de 18,4% em relação ao ano anterior e 65,8% em comparação com o ano de 2015, conforme o levantamento “Panorama econômico dos clubes”, elaborado pelo escritório Marcello Macêdo Advogados.

Nesse contexto, no âmbito jurídico, quando as soluções de mercado se mostram ineficientes, é facultado ao empresário buscar a tutela jurisdicional, por meio da recuperação judicial. O instrumento autoriza uma negociação com todos os credores sujeitos aos seus efeitos, nos termos da Lei nº 11.101/05, recentemente reformada pela Lei nº 14.112/20.

Por este procedimento judicial, o devedor em crise deve apresentar aos seus credores um plano com os meios adequados ao seu soerguimento econômico-financeiro, por qualquer instrumento em Direito admitido[1], ensejando, na maioria das vezes, desde deságios e alongamentos das dívidas arroladas até operações societárias complexas, como fusões, aquisições e alteração do bloco de controle.

Neste caso, quando o plano é aceito pelos credores, reunidos em assembleia devidamente convocada e, posteriormente, homologado pelo juiz da recuperação judicial, nasce um negócio jurídico próprio que pavimentará um caminho para que o devedor possa sanar seu passivo por meios que se amoldem ao seu fluxo de caixa combalido. Além disso, concederá aos credores um título executivo judicial, passível de execução específica caso inadimplido. Ou, ainda, o direito potestativo de requerer a falência do devedor em recuperação judicial que descumpriu o pacto.

A recuperação judicial é o remédio jurídico para o devedor em crise e economicamente viável, objetivando o soerguimento da atividade econômica exercida. A confiança e a segurança no procedimento judicial vêm calcando as bases para a própria retomada econômica do Brasil, à medida que grandes conglomerados empresariais buscam na recuperação judicial um caminho para sair da crise, garantindo, neste percurso, a manutenção de empregos, a circulação de bens e riquezas e o recolhimento de tributos.

Por outro lado, uma das maiores críticas ao sistema brasileiro legal de insolvência é a falta de previsão específica de sua tutela jurisdicional aos agentes econômicos não enquadrados na qualidade de empresário. Inúmeras associações, como os clubes de futebol, sociedades civis e fundações, a despeito de exercerem importante atividade econômica, não estão, em regra, enquadradas como beneficiárias da proteção legal advinda da recuperação judicial.

Não há quem não hasteie a bandeira da importância que essas instituições exercem no desenvolvimento econômico do país, sobretudo reiterando o seu potencial para gerar empregos diretos e indiretos, circulação de bens, serviços e riquezas e arrecadação de tributos. A crise de uma entidade não-empresarial é tão avassaladora quanto a do empresário. Dessa forma, não a acolher sob a mesma batuta do sistema legal de insolvência brasileiro evidencia a existência de um elefante na sala.

O problema é ainda mais explícito quando o referido paquiderme é símbolo de uma paixão nacional, que move multidões, quase uma questão de religião, que eternizou crônicas memoráveis de grandes nomes do jornalismo, como Nelson Rodrigues e Mário Filho: os clubes de futebol brasileiros.

Vale destacar que o clube-empresa é tido como o antídoto para solucionar a gravíssima situação econômico-financeira vivenciada pelos clubes ao viabilizar uma gestão mais profissional e eficiente das entidades de prática desportiva, o que possibilitaria a reestruturação das finanças dos clubes, que acumulam anos de administrações inexitosas.

Cabe mencionar, inclusive, que o Projeto de Lei nº 5516/2019, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, foi aprovado recentemente no Senado e vai agora para a Câmara dos Deputados para a apreciação dos parlamentares. Destaca-se que o PL prevê a criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), um novo tipo societário destinado exclusivamente aos clubes, bem como estabelece normas de governança, controle e transparência, institui meios de financiamento da atividade desportiva e cria um regime tributário próprio das SAFs, denominado Tributação Específica do Futebol (TEF).

No entanto, o referido cenário não retrata a atual realidade, tendo em vista que atualmente apenas 8% dos clubes brasileiros são constituídos sob o formato de clube-empresa, dentre eles o Red Bull Bragantino (Sociedade Empresária Limitada), Botafogo de Ribeirão Preto (Sociedade Anônima Fechada) e Cuiabá (Sociedade Empresária Limitada).

Ocorre que, apesar da Lei nº 11.101/05 não abarcar a oportunidade de fruição da recuperação judicial às associações sem fins lucrativos, ao mesmo tempo, não veda expressamente a utilização desse instituto por elas ou outros agentes econômicos não empresariais.

Em razão disso, aplicando-se a teoria do diálogo das fontes, cuja finalidade é a interpretação unitária do ordenamento jurídico, entende-se que o artigo 1º da Lei nº 11.101/05 deve ser interpretado juntamente com o artigo 27, § 6º, da Lei Pelé. Isto é, de forma que o ordenamento jurídico seja analisado de uma maneira macro sistêmica.

Apenas à guisa de compreensão adequada, estipula o artigo 27, § 6º da Lei Pelé que as entidades de prática desportiva poderão fazer jus a programas de recuperação econômico-financeiros, dentre eles a Recuperação Judicial, no entendimento dos autores do presente trabalho.

Sob esta fundamentação, o Figueirense (SC) teve sua recuperação judicial deferida, uma vez que o Tribunal de Justiça entendeu pela legitimidade ativa do clube de futebol, mesmo que constituído sob o formato de associação, ao analisar a Lei nº 11.101/05 juntamente com o artigo 27, § 6º, da Lei Pelé.

Como se vê, apesar de amplamente difundido o entendimento relativo à impossibilidade de as associações sem fins lucrativos requererem a recuperação judicial, certo é que tal prerrogativa é viável juridicamente nos casos em que o artigo 2º da Lei nº 11.101/05 não veda expressamente, pois, como cediço, as normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente, para limitar o mínimo do direito posto.

Assim, o magistrado não deve se ater apenas à natureza jurídica do agente econômico, mas sim ao impacto da atividade econômica por ele desenvolvida, analisando a questão sob um prisma mais amplo.

Diante disto, necessário se faz a concessão da Recuperação Judicial para associações civis com ampla capacidade de reabilitação, com vistas a cumprir as finalidades indicadas no artigo 47 da Lei nº 11.101/05, quais sejam a manutenção da fonte produtora, o emprego dos trabalhadores e os interesses dos credores.

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1Até porque o rol do artigo 50, da Lei nº 11.101/05, é meramente exemplificativo.

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*Guilherme Santos Macêdo e Uri de Sousa Wainberg são sócios do escritório Marcello Macêdo Advogados.

Publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/remedio-juridico-para-a-crise-dos-clubes-de-futebol-06072021