23 de junho de 2023 Tokenização do entretenimento

A indústria de ingressos, como sabido, impacta milhões de pessoas ao redor do globo, bem como é responsável por movimentar valores bilionários. Segundo o estudo recentemente realizado pela Mordor Intelligence[1], o mercado de ingressos foi avaliado em US$ 28,4 bilhões em 2021 e deve atingir US$ 94,9 bilhões até 2027. 

Diante disto, notória é a importância deste mercado, que além de transacionar valores proeminentes, é responsável por franquear o acesso de todos indivíduos aos mais variados eventos de distintos segmentos, desde palestras e eventos corporativos até espetáculos desportivos e de entretenimento, sendo estes últimos o foco do presente estudo, tendo em vista estarem no centro dos maiores problemas desta indústria: o cambismo e a falsificação de ingressos. 

Indubitavelmente, essas são mazelas que não são exclusivas de nosso país, ocorrendo, inclusive, recentemente na última edição da final da Liga dos Campeões da Europa disputada entre o Real Madrid e o Liverpool[2], e deverão ser resolvidas com vistas a proporcionar uma maior segurança aos consumidores, bem como para otimizar este mercado em prol dos enormes benefícios econômicos e sociais advindos da operação.  

Neste ponto, buscando mitigar os problemas supramencionados, cada vez mais a integração tecnológica aos modelos negociais já existentes é imperiosa para garantir o maior aproveitamento econômicos aos players envolvidos e a segurança jurídica. 

Com efeito, aborda-se o processo de tokenização, consistente na conversão de ativos tangíveis, intangíveis, fungíveis ou infungíveis, em ativos digitais, possibilitando a sua transferência para terceiros através da tecnologia blockchain. Neste caso, o ativo a ser tokenizado é justamente o ingresso. 

Neste cenário, os famigerados NFTs (tokens não fungíveis), tidos por muitos como uma farsa e que ficaram estigmatizados como singelas imagens digitais, cujo preço atingia quantias exorbitantes, em alusão aos projetos que se resumiam a profile pictures e comunidades exclusivas, tais como o Bored Ape Yacht Club (BAYC), se apresentam neste momento como a solução para a indústria.  

Isto porque os NFTs são certificados de autenticidade de um ativo digital ou uma representação digital de um ativo físico, registrado em uma blockchain, sendo certo que, por estar inserido nesta tecnologia, factível se torna a análise de quem emitiu o token para validar que este é efetivamente original ou não, o que, consequentemente, torna impossível a sua falsificação. 

Além disso, o NFT se presta como certificado de propriedade, o que possibilita a verificação de quem é o titular daquele ativo digital através de uma simples averiguação se aquele token está dentro da wallet daquele indivíduo que está tentando utilizar aquele ingresso, tendo em vista a rastreabilidade deste ativo digital, proporcionado uma maior segurança. Soma-se a isto a possibilidade de compreender quem são os indivíduos presentes no espetáculo, suas preferências e hábitos de consumo. 

Como se não bastasse, a tokenização de ingressos traria outra importante vantagem aos organizadores do evento, qual seja, a monetização do mercado secundário. Isto porque, ao emitir o NFT, o organizador do evento pode estipular no smart contract (contrato que auto executa regras pré-determinadas caso certas condições sejam atingidas) um percentual a ser recebido por ele em caso de revenda do ingresso do titular original para um terceiro. Em outras palavras, caso o torcedor de um clube tenha adquirido um ingresso e por algum motivo não possa mais comparecer ao jogo, ele terá a possibilidade de negociar esse ingresso tokenizado em uma exchange, cujo mercado é global e o funcionamento é 24 horas por dia, sete dias por semana, e o organizador do evento pode receber um percentual do valor desta revenda. 

Isto sem levarmos em consideração 1) a possibilidade de impedir, através de programação no smart contract, que determinados ingressos sejam transferidos, como as gratuidades concedidas por lei; 2) a proibição de determinados indivíduos de acessarem o local do espetáculo, como integrantes de torcida organizada eventualmente banidos de frequentar o estádio; 3) a concepção de ingressos colecionáveis para recordação e eventual revenda no mercado secundário com consequente potencial de geração de receita no pós-evento; e 4) a possibilidade de assegurar aos detentores de determinados NFTs acesso a experiências e/ou benefícios específicos antes, durante ou após o espetáculo, dentre diversas outras oportunidades. 

Ocorre que a prática de revender ingressos de eventos, que dá azo ao chamado mercado secundário de ingressos, popularmente conhecido como cambismo, é tida como crime no Brasil, nos termos da Lei 10.671/2003, também conhecida como Estatuto do Torcedor, que a partir da alteração promovida em 2010, passou a prever especificamente a referida prática no âmbito dos eventos esportivos[3]. 

Acontece que normalmente a mera proibição de uma conduta e/ou atividade não é suficiente para que ela não seja perpetrada pelas pessoas. Ainda que existam severas sanções e forte fiscalização por parte do Estado, algumas atividades, em razão de sua alta lucratividade e apelo sociocultural, atraem aqueles que, a despeito dos riscos, visam obter ganhos exponenciais, ainda que exercendo atividade ilícita, como no presente caso.  

Nesta toada, surgem os cambistas, que cobram valores exorbitantes por aqueles ingressos que não seriam utilizados e foram comprados por eles para serem revendidos a terceiros interessados em frequentar o espetáculo. Como se vê, ao fim e ao cabo, a referida proibição prejudica fortemente os consumidores interessados em frequentar o evento, pois, sem a possibilidade de adquirir o ingresso em um mercado secundário regulamentado, estes se veem na obrigação de comprar o ticket de um cambista, que pratica valores irreais com o objetivo de compensar os riscos envolvidos em sua atividade ilegal. 

De certo, é razoável que a cobrança de preços abusivos deva ser coibida nesse mercado, bem como a prática de outros eventuais ilícitos, como eventualmente a lavagem de dinheiro e sonegação de impostos. Por outro lado, sua mera proibição se demonstra não ser o melhor remédio para proteger o consumidor, eis que nitidamente o prejudica. 

Assim, demonstradas as inúmeras vantagens da regulamentação do mercado secundário de ingressos, interessante se torna apresentar a viabilidade jurídica da operação de revenda de ingressos com base na Lei de Liberdade Econômica. 

A partir da referida lei, o Legislador pátrio buscou garantir uma maior proteção à livre iniciativa e livre concorrência, valores previstos na Constituição Federal, e à liberdade profissional. 

Isto posto, é de se ressaltar, através de analogia à polêmica envolvendo a empresa Uber e sua eventual proibição no país, que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 449/DF foi de entender pela inconstitucionalidade da vedação da oferta desse serviço no país, em respeito à liberdade de exercício das atividades econômicas e profissionais por parte dos cidadãos.  

Dessa forma, pode se compreender que o Estado brasileiro deve, em regra, permitir que uma atividade econômica seja exercida, regulamentando o que for necessário para coibir abusos e ilicitudes, sobretudo nesta hipótese que a proibição e criminalização desta atividade acarreta em patente prejuízo aos consumidores e aos demais stakeholders. 

Ademais, não faz sentido a manutenção da proibição das atividades desse setor no país. Pelo contrário, sua legalização e regulação estaria de acordo com os princípios adotados pelo ordenamento jurídico nacional, além de proporcionar maior efetividade à proteção do consumidor e ao estímulo da economia. 

Afinal de contas, é legítimo que o consumidor possa preferir adquirir um ingresso com maior comodidade, por meios não oferecidos pelo promotor do evento, mas proporcionados por outros agentes com o custo de uma taxa razoável. Ademais, também é razoável que o consumidor que não possa mais comparecer ao evento possa ter opções de amortizar o prejuízo suportado, por meio do próprio mercado.  

Diante disto, imprescindível se verifica a legalização desta atividade e a regulamentação do mercado secundário de ingressos, cuja atividade deve, desde então, ser permitida com base nos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, considerando os inúmeros benefícios atrelados ao uso da tecnologia blockchain, que proporcionarão vantagens a todos os stakeholders, dentre eles, mas não se limitando, uma maior segurança na aquisição de ingressos, considerando que os NFTs são certificados de autenticidade, o que impossibilita a falsificação de um ingresso, bem como são rastreáveis, o que permite a verificação de quem é o titular daquele ativo digital – ingresso – através de uma simples averiguação se aquele token está dentro da wallet daquele indivíduo que está tentando utilizar aquele ingresso. 

O potencial do mercado secundário de ingressos para eventos esportivos e de entretenimento é enorme, suas vantagens são claras e a tecnologia já existe e está validada, razão pela qual não subsistem motivos para que o Estado brasileiro proíba e criminalize o exercício desta atividade econômica. 

Não se pode olvidar que o bitcoin e a criptografia criaram a moeda virtual e a economia digital, enquanto os NFTs são responsáveis por conceber a internet da propriedade. Todo ativo que possui valor no mundo físico será representado digitalmente como tokens não fungíveis em um futuro breve e negar isto é o mesmo que ignorar uma realidade já estabelecida.


[1] https://www.mordorintelligence.com/pt/industry-reports/global-online-event-ticketing-market-industry#:~:text=Download%20Free%20Sample-,Vis%C3%A3o%20geral%20do%20mercado,como%20o%20per%C3%ADodo%20de%20previs%C3%A3o). Acesso em 11/11/2022. 

[2] https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/liga-dos-campeoes/noticia/2022/05/29/final-da-champions-registra-68-torcedores-presos-e-174-feridos.ghtml. Acesso em 12/11/2022. 

[3]Artigo 41-F. Vender ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete:  
Pena – reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.  


Artigo 41-G. Fornecer, desviar ou facilitar a distribuição de ingressos para venda por preço superior ao estampado no bilhete  

_____

Guilherme Macêdo é sócio do escritório Marcello Macêdo Advogados e associado da Win The Game.

Uri Wainberg é sócio do escritório Marcello Macedo Advogados. Administrador Judicial pela Escola de Administração Judiciária do TJRJ. Especialista em Direito de Empresas pela PUC-Rio. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Tem experiência em Recuperação de Empresas e Falência, Direito Societário, Cível e Arbitragem.

Carlos Magno Faissal Nazareth Cerqueira é advogado é pós-graduando em Negócios no Esporte e Direito Desportivo pelo Cedin. Graduado em Direito pelo Ibmec RJ. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Desportivo – Ibmec RJ. Certificado em Governança Corporativa e Compliance no Futebol pela CBF Academy, em Compliance e Governança Corporativa pela ESA OAB/RJ, em Mecanismo de Solidariedade e Indenização por Treinamento da Fifa pelo Hubstage, e Recuperação Judicial e Falência pelo IBDE.

Publicado em: https://www.jota.info/artigos/tokenizacao-do-entretenimento